Sábado, 26 de Setembro de 2009
O que aconteceu ?
Cristovam Buarque
O que aconteceu para que o Senado,
com 180 anos, respeitado e admirado por seu passado, de repente, perdesse sua
credibilidade?
O que foi que aconteceu para que,
depois de cento e vinte anos de República, o Brasil ainda seja um país tão
dividido no acesso à saúde, à educação, à moradia, tão diferenciado entre
pobres e ricos – como se tivéssemos uma aristocracia encastelada e um povo
abandonado?
O que aconteceu para que, cento e
vinte um anos depois da Abolição da Escravatura, as boas universidades
continuem reservadas para brancos e as prisões para negros?
E por que a justiça no Brasil se faz
de maneira tão desigual quando julga um réu conforme sua riqueza?
O que foi que aconteceu para que a
corrupção seja tão tolerada pelas instituições e pelos eleitores apesar de tão
denunciada pela mídia?
O que aconteceu para que o sonho da
energia renovável do etanol seja colocado de lado pela proposta da energia
fóssil do petróleo?
Por que a hipótese do pré-sal domina
muito mais o imaginário brasileiro do que a realidade da pré-escola?
O que foi que aconteceu para os
partidos ficarem todos iguais? E os intelectuais calados em um silêncio
reverencial? E os sindicatos acomodados? E os estudantes dóceis diante de
governos que não lhes oferecem a educação a que têm direito?
O que foi que aconteceu para que a
população considere que é melhor ficar parado nos monumentais engarrafamentos
de automóveis a ir rápido graças à implantação de um eficiente sistema de
transporte coletivo? E que motivo leva os governantes não implementarem um
eficiente sistema de transporte coletivo?
Por que os dirigentes perderam a
capacidade de propor alternativa para os rumos do país?
O que aconteceu para os candidatos a
presidente se preocuparem tanto com a aceleração do crescimento da economia e
nada de imaginarem mudanças na estrutura social e econômica do país?
O que aconteceu que as famílias
brasileiras se desarticularam, perderam aglutinação, fazendo com que as
mulheres estejam sozinhas e os filhos nas ruas?
O que aconteceu para que, no Brasil,
o imposto para automóveis seja reduzido no mesmo ano em que se aumenta o
imposto sobre os livros?
O que aconteceu com as escolas
públicas que eram de qualidade e recebiam os filhos das classes média e alta, e
agora estão abandonadas, apenas para os filhos dos pobres, a ponto de muitas
escolas se transformarem em simples restaurantes aonde as crianças vão pela
merenda, sem aulas, sem dever de casa, sem aprendizado?
O que foi que aconteceu para o
Brasil destruir a Mata Atlântica, reduzida a apenas 3% do seu tamanho anterior?
O que foi que aconteceu para o
Brasil trate tão mal seus velhos, suas crianças, seus professores? E para que o
Supremo Tribunal Federal consiga com rapidez e naturalidade o aumento no teto
salarial dos juízes e não aceite definir como constitucional o piso do salário
para os professores?
O que foi que aconteceu para os
partidos políticos terem se derretido, na ausência de ideologia e de programa?
Como explicar que conseguimos saldar
a dívida externa, mas não social, usamos dólares para pagar bancos, mais não
usamos reais para alfabetizar, educar, garantir acesso à saúde?
O que aconteceu que o pacato homem
brasileiro se transformou em assassino no trânsito, destruidor de florestas,
assaltante em sinais de trânsito, cínico diante do sofrimento social, conivente
com a corrupção?
O que foi que aconteceu para que, no
Brasil, viaduto ficasse mais importante do que escola e postos de saúde?
O que aconteceu que os centros de
nossas cidades foram abandonados, substituídos por shopping e condomínios? Como
foi que o Brasil se transformou em um labirinto de muros dividindo e separando
o seu povo em dois?
O que foi que aconteceu que nossos
universitários ficaram conservadores, egoísticamente voltados para si, e as
universidades de costas para o povo?
O que aconteceu para permitir que o
pragmatismo das pequenas transferências de rendas substituísse os sonhos da
Revolução Social?
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Ramona e o Dem
O Brasil e os
mercenários da Blackwater
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CONSENSO DE WASHINGTON
(Do livro: Para conhecer o Neoliberalismo, João José Negrão, pág. 41-43, Publisher Brasil, 1998)
"Em 1989, no bojo do reaganismo e do tatcherismo máximas expressões do neoliberalismo em ação, reuniram-se em Washington, convocados pelo Institute for International Economics, entidade de caráter privado, diversos economistas latino-americanos de perfil liberal, funcionários do Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do governo norte-americano. O tema do encontro Latin Americ Adjustment: Howe Much has Happened?, visava a avaliar as reformas econômicas em curso no âmbito da América Latina.
John Willianson, economista inglês e diretor do instituto promotor do encontro, foi quem alinhavou os dez pontos tidos como consensuais entre os participantes. E quem cunhou a expressão "Consenso de Washington", através da qual ficaram conhecidas as conclusões daquele encontro, ao final resumidas nas seguintes regras universais:
Embora tivessem, em princípio, caráter acadêmico, as conclusões do Consenso acabaram tornando-se o receituário imposto por agências internacionais para a concessão de créditos: os países que quisessem empréstimos do FMI, por exemplo, deveriam adequar suas economias às novas regras. Para garantir e "auxiliar" no processo das chamadas reformas estruturais....., o FMI e as demais agências do governo norte-americano ou multilaterais incrementaram a monitoração – novo nome da velha ingerência nos assuntos internos – das alterações "modernizadoras".
Em síntese, é possível afirmar que o Consenso de Washington faz parte do conjunto de reformas neoliberais que apesar de práticas distintas nos diferentes países, está centrado doutrinariamente na desregulamentação dos mercados, abertura comercial e financeira e redução do tamanho e papel do Estado.
E, conforme o ex-embaixador Paulo Nogueira Batista, "apresentado como fórmula de modernização, o modelo de economia de mercado preconizado no consenso de Washington constitui, na realidade, uma receita de regressão a um padrão econômico pré-industrial caracterizado por empresas de pequeno porte e fornecedoras de produtos mais ou menos homogêneos.
O modelo é o proposto por Adam Smith e referendado com ligeiros retoques por David Ricardo faz dois séculos. Algo que a Inglaterra, pioneira da Revolução Industrial, pregaria para uso das demais nações mas que ela mesma não seguiria à risca.
No Consenso de Washington prega-se também uma economia de mercado que os próprios Estados Unidos tampouco praticaram ou praticam (...). O modelo ortodoxo de laissez-faire, de redução do Estado à função estrita de manutenção da ‘lei e da ordem’ – da santidade dos contratos e da propriedade privada dos meios de produção – poderia ser válido no mundo de Adam Smith e David Ricardo, em mercados atomizados de pequenas e médias empresas gerenciadas por seus proprietários e operando em condições de competição mais ou menos perfeita; universo em que a mão-de-obra era vista como uma mercadoria, a ser engajada e remunerada exclusivamente segundo as forças da oferta e da demanda; uma receita, portanto, de há muito superada e que pouco tem a ver com os modelos modernos de livre empresa que se praticam, ainda que de formas bem diferenciadas, no Primeiro Mundo" (Batista: 1995, pág. 119-120).
Na verdade, o Consenso de Washington representa, no contexto da América Latina, o mesmo movimento de contra-ataque do capitalismo em relação às conquistas dos trabalhadores. É desnecessário afirmar que aqui o pano de fundo é outro, que existem, quando muito, arremedos de Estados de Bem-estar e que a democracia, a muito custo, tenta fazer sua reentrada num continente marcado por sucessivos períodos de ditaduras declaradas ou disfarçadas, civis ou militares (com preponderância das últimas). Em suma, aqui na América Latina o conservadorismo propõe discussões e modelos pós-welfare para sociedades que nem sequer se aproximaram daquela configuração no que diz respeito a direitos sociais e distribuição de renda e onde, ao contrário, o Estado tem servido historicamente mais aos interesses das classes dominantes associadas-dependentes ou não do capitalismo mundial, do que aos setores subalterno
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Empresas
terceirizadas quebram sem deixar pistas
Muitas firmas desse tipo são abertas em nome de laranjas, e
quando fecham as portas, deixam de cumprir os direitos trabalhistas que são
devidos aos empregados
Os índios e o golpe na Constituição
Por que você deve ler essa
coluna “apesar” da palavra índio
O
pacote maligno
As
mãos por trás do golpe
Os
índios, esses estrangeiros nativos
Aderir
ou pensar?
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Ramona e o Dem
06 DE MAIO DE 2014
Mauro Santayana
A médica
Ramona Matos Rodriguez, cubana contratada por uma organização ligada a seu
governo, para prestar serviços no Brasil no programa Mais Médicos no município
paraense de Pacajá, “fugiu” de seu posto e “refugiou-se” no gabinete da
liderança do DEM, na Câmara dos Deputados.
A cubana
alegou que tomou a decisão de procurar o DEM, ao sentir-se traída por
“descobrir” que no Brasil profissionais de outras nacionalidades estavam
recebendo 10 mil reais por mês enquanto, para os cubanos, o salário seria de
mil dólares, 400 pagos no Brasil e 600 depositados em Cuba.
É difícil acreditar que Ramona tenha sido particularmente
escolhida pelo governo de Havana, para ser “enganada”, entre centenas de
médicos cubanos que estão trabalhando no Brasil. Assim como é
perfeitamente compreensível que, vinda de um país socialista, na qual teve acesso, durante toda a sua formação, a educação
fornecida pelo Estado, do berço à universidade, Ramona seja chamada a devolver
ao povo cubano a parte maior do que recebe para que esse dinheiro seja
aplicado na educação, saúde e melhora da condição de vida de outros cubanos,
que vivem em uma nação que sofre, há décadas, os efeitos do boicote econômico
norte-americano.
Se no Brasil
houvesse esse tipo de mentalidade, ou uma espécie de serviço social
obrigatório, que permitisse que jovens formandos, especialmente aqueles que
estudaram em escolas e universidades públicas, devolvessem um pouco do que a
sociedade brasileira lhes possibilitou, atendendo pessoas e comunidades
carentes, quem sabe não teríamos casos de médicos pedindo para serem acordados
no final de seu plantão em hospitais públicos, ou fazendo uso de falsas
impressões digitais de silicone, para simular presença em postos de saúde.
O
Conselho Federal de Medicina pode estar dando um tiro no pé ao apoiar o caso
Ramona.
Ao dizer que gostaria de fazer o Revalidae ficar no Brasil, e,
ao mesmo tempo, pedir um visto para os Estados Unidos, Ramona Sanchez mostra
claramente qual é seu objetivo.
A intenção,
longe de qualquer altruísmo político, é trocar os desafios e dificuldades da
pequena Pacajá, no interior do Pará, pelas praias e a badalação da comunidade
anticastrista de Miami, onde será incensada e receberá as benesses daqueles que
a maioria de seus compatriotas chamam, pejorativamente, de “gusanos”.
Longe de inviabilizar ou prejudicar o Programa Mais Médicos, o Conselho
Federal de Medicina pode estar dando um tiro no pé ao apoiar e transformar em
uma bandeira o caso Ramona.
Ao tomar essa
atitude, o CFM pode estar incentivando dezenas, centenas de médicos cubanos a
copiarem Ramona fazendo com que passem a concorrer, com residência e Revalida,
com médicos brasileiros, não apenas no interior mas também nos grandes centros.
Afinal, o DEM
já deixou claro — em aberta convocação — que suas portas estão abertas
para qualquer médico cubano que queira “desertar”.
A sorte do
Conselho Federal de Medicina e dos “democratas” é que, dos 5.378 médicos
cubanos que estão no Brasil, só um, ou 0,019 %, a doutora Ramona Matos
Rodriguez, teve, até agora, o jeito de caradura e a falta de caráter de tomar
essa atitude.
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O Brasil e os
mercenários da Blackwater
Mauro
Santayana
Jornal do Brasil
22 abril 2014
A Folha de S.Paulo revelou,
ontem, que 22 agentes e policiais militares estiveram, por vários dias, em
treinamento, para atividades “antiterroristas”. O curso foi ministrado pela
Blackwater, hoje Academi, uma organização “terceirizada” de mercenários, que é
conhecida, justamente, por ter auxiliado os Estados Unidos, em vários países do
mundo, em atividades de terrorismo de Estado.
Ora, nossos
agentes e soldados não têm absolutamente nada a aprender com os EUA a propósito
da “luta contra o terror”. Primeiro, porque não possuímos — como eles, que
a criaram, interessadamente — uma doutrina “antiterrorista”, e
também porque não temos por que adotar uma no futuro. Nem consideramos
como terroristas os povos e grupos que os norte-americanos acusam de
terrorismo, como os iranianos ou os palestinos.
O Brasil democrático — é duro ter que lembrar isso
todo o tempo — não invade nem rouba territórios alheios,
não apoia golpes em terceiros países, nem possui inimigos no mundo. A não
ser, claro, aqueles — como é o caso justamente dos
EUA — que querem voltar aos velhos tempos em que tinham
quase que total domínio sobre o nosso destino. E que para isso ficam
inventando histórias da carochinha para
enganar o bando — sempre disponível — de néscios
embasbacados, ao longo de anos, pelos seminários de “segurança” estilo Escola das Américas;
tapinhas, nas costas, dos adidos militares “ocidentais”; e pelas séries
policiais de TV e os filmes de espionagem norte-americanos.
É
incompreensível, para não dizer inaceitável — mesmo considerando-se
toda a pressão advinda da oposição e da própria administração
pública — que um governo que se diz nacionalista e de “
centro-esquerda” aceite “ajuda”, em treinamento, de uma potência hegemônica
estrangeira.
E, menos
ainda, que forças brasileiras de segurança sejam “adestradas” por uma quadrilha
de mercenários, pertencentes a uma “empresa” conhecida pela prática do
assassinato e da tortura em países como o Iraque, em conflito, no qual, o
Brasil esteve, desde o início, radicalmente contra a posição norte-americana.
Afinal — mesmo que justificável fosse esse tipo de
“treinamento” — a Blackwater é mais
conhecida por sua estupidez e trapalhadas do que por sua eventual competência
em uma área em que se costuma valorizar mais a inteligência que a brutalidade e
o gatilho. Ela é apenas uma unidade de “seguranças”, e não uma tropa de
elite.
O
Brasil não invade nem rouba terras alheias, não apoia golpes em
terceiros países, nem possui inimigos
Não se
conhece uma única operação em que a Blackwater tenha detido algum importante
“terrorista”, como são chamados os que se insurgem, normalmente em seu próprio
solo, contra a Otan e os Estados Unidos.Mas seus homens são sobejamente
conhecidos por atirar em pessoas inocentes e por outras situações que não
exigem nenhum tipo de coragem pessoal. Entre elas, ficou famosa uma
simples missão de proteção de um comboio que levava pessoal do Departamento de
Estado para uma reunião com funcionários da Agência de Desenvolvimento
Internacional dos Estados Unidos, no Iraque, no dia 16 de setembro de
2007.
A
incompetência dos homens da Blackwater Personal Security
Detail transformou uma simples missão de escolta em um tiroteio
descontrolado, e não justificado, contra uma multidão desarmada de civis
iraquianos, que deixou um saldo de 17 mortos e dezenas de feridos, na Praça
Nisour, em Bagdá.
Entre outras
falhas de segurança e de autocontrole e disciplina, um dos assassinos da
empresa continuou atirando nos civis mesmo depois de o fogo ter sido suspenso,
e só deixou de disparar quando um “colega” se aproximou e, apontando a arma
para sua cabeça, ameaçou abatê-lo, se continuasse a fazê-lo.
O massacre indignou o governo e a população iraquiana, e o episódio
foi determinante para a posterior saída das tropas norte-americanas, e da
própria Blackwater, do
país.
Pressionado, o Departamento de Estado foi
obrigado — só então — a baixar uma
lei colocando sob a jurisdição dos tribunais norte-americanos crimes passíveis
de punição cometidos por mercenários de empresas “terceirizadas”, em território
estrangeiro; uma investigação da Câmara dos Deputados dos EUA determinou que os
homens da Blackwaterestavam envolvidos em vários
episódios de “uso excessivo de força”, com mortes, no Iraque, e que em 80% dos
casos disparavam sem ter sido previamente atacados.
O deputado
norte-americano Henry Waxman declarou, após pesquisa, que a controvérsia sobre
a Blackwater era uma infeliz demonstração dos “perigos do relaxamento excessivo”,
na contratação de seguranças privados pelo sistema de defesa dos Estados
Unidos.
No mesmo ano,
a ONU divulgou um estudo, declarando que a contratação de empresas privadas
como a Blackwater não passa de nova forma de encobrir “atividades mercenárias”,
o que é claramente ilegal sob as leis internacionais.
Os
EUA — que se apresentam como os paladinos da defesa da Lei e da
Ordem — não são signatários da Convenção das Nações Unidas
de 1989, que proíbe o uso de mercenários. Também não aderiram ao protocolo
adicional de 1977 à Convenção de Genebra, que classifica os mercenários como
civis “que participam diretamente de combates, com o intuito de ganhos
privados”.
Para o
governo brasileiro, o episódio do treinamento de forças de segurança nacionais
por uma empresa ilegal, aos olhos da legislação internacional, sediada nos
Estados Unidos, é uma vergonha.
Primeiro,
porque, se o governo tinha conhecimento disso no mais alto escalão, sabia do
papelão que estava fazendo junto a parte da opinião pública, e a parceiros do
Brics e da América do Sul. Em segundo lugar, porque se a decisão foi
tomada de forma independente pela “Secretaria de Segurança para Grandes
Eventos” é preciso reforçar, por lei, o conceito, de que a aceitação de “ajuda”
de terceiros países para treinamento de policiais brasileiros de qualquer
escalão ou organização, é assunto de segurança nacional e deve ser de
exclusiva atribuição da Presidência da República, ouvida a Comissão de
Relações Externas, no Congresso.
Não é preciso ser expert para
saber que sob o manto desses programas de “cooperação”, os Estados Unidos não
buscam nada mais do que cooptar — como fizeram no
passado — técnica e ideologicamente nossos agentes e
oficiais, para a defesa de seus interesses e de sua visão de mundo. Com a
esperança, até, de obter apoio ou facilitação, eventualmente, para futuras
ações de espionagem, em território brasileiro.
Para efeito de comparação, o que não estaria ocorrendo, se, por
decisão de uma comissão qualquer — sem eventual conhecimento do
Itamaraty e da Presidência da República — no lugar de ir
para Moyock, na Carolina
do Norte, esse pessoal tivesse viajado para um centro de treinamento em Cuba,
ou na Rússia?
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CONSENSO DE WASHINGTON
(Do livro: Para conhecer o Neoliberalismo, João José Negrão, pág. 41-43, Publisher Brasil, 1998)
"Em 1989, no bojo do reaganismo e do tatcherismo máximas expressões do neoliberalismo em ação, reuniram-se em Washington, convocados pelo Institute for International Economics, entidade de caráter privado, diversos economistas latino-americanos de perfil liberal, funcionários do Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do governo norte-americano. O tema do encontro Latin Americ Adjustment: Howe Much has Happened?, visava a avaliar as reformas econômicas em curso no âmbito da América Latina.
John Willianson, economista inglês e diretor do instituto promotor do encontro, foi quem alinhavou os dez pontos tidos como consensuais entre os participantes. E quem cunhou a expressão "Consenso de Washington", através da qual ficaram conhecidas as conclusões daquele encontro, ao final resumidas nas seguintes regras universais:
1.
Disciplina
fiscal, através da qual o Estado deve limitar seus gastos à arrecadação,
eliminando o déficit público;
2.
Focalização
dos gastos públicos em educação, saúde e infra-estrutura
3.
Reforma
tributária que amplie a base sobre a qual incide a carga tributário, com maior
peso nos impostos indiretos e menor progressividade nos impostos diretos
4.
Liberalização
financeira, com o fim de restrições que impeçam instituições financeiras
internacionais de atuar em igualdade com as nacionais e o afastamento do Estado
do setor;
5.
Taxa de
câmbio competitiva;
6.
Liberalização
do comércio exterior, com redução de alíquotas de importação e estímulos á
exportação, visando a impulsionar a globalização da economia;
7.
Eliminação
de restrições ao capital externo, permitindo investimento direto estrangeiro;
8.
Privatização,
com a venda de empresas estatais;
9.
Desregulação,
com redução da legislação de controle do processo econômico e das relações
trabalhistas;
10.
Propriedade
intelectual.
Embora tivessem, em princípio, caráter acadêmico, as conclusões do Consenso acabaram tornando-se o receituário imposto por agências internacionais para a concessão de créditos: os países que quisessem empréstimos do FMI, por exemplo, deveriam adequar suas economias às novas regras. Para garantir e "auxiliar" no processo das chamadas reformas estruturais....., o FMI e as demais agências do governo norte-americano ou multilaterais incrementaram a monitoração – novo nome da velha ingerência nos assuntos internos – das alterações "modernizadoras".
Em síntese, é possível afirmar que o Consenso de Washington faz parte do conjunto de reformas neoliberais que apesar de práticas distintas nos diferentes países, está centrado doutrinariamente na desregulamentação dos mercados, abertura comercial e financeira e redução do tamanho e papel do Estado.
E, conforme o ex-embaixador Paulo Nogueira Batista, "apresentado como fórmula de modernização, o modelo de economia de mercado preconizado no consenso de Washington constitui, na realidade, uma receita de regressão a um padrão econômico pré-industrial caracterizado por empresas de pequeno porte e fornecedoras de produtos mais ou menos homogêneos.
O modelo é o proposto por Adam Smith e referendado com ligeiros retoques por David Ricardo faz dois séculos. Algo que a Inglaterra, pioneira da Revolução Industrial, pregaria para uso das demais nações mas que ela mesma não seguiria à risca.
No Consenso de Washington prega-se também uma economia de mercado que os próprios Estados Unidos tampouco praticaram ou praticam (...). O modelo ortodoxo de laissez-faire, de redução do Estado à função estrita de manutenção da ‘lei e da ordem’ – da santidade dos contratos e da propriedade privada dos meios de produção – poderia ser válido no mundo de Adam Smith e David Ricardo, em mercados atomizados de pequenas e médias empresas gerenciadas por seus proprietários e operando em condições de competição mais ou menos perfeita; universo em que a mão-de-obra era vista como uma mercadoria, a ser engajada e remunerada exclusivamente segundo as forças da oferta e da demanda; uma receita, portanto, de há muito superada e que pouco tem a ver com os modelos modernos de livre empresa que se praticam, ainda que de formas bem diferenciadas, no Primeiro Mundo" (Batista: 1995, pág. 119-120).
Na verdade, o Consenso de Washington representa, no contexto da América Latina, o mesmo movimento de contra-ataque do capitalismo em relação às conquistas dos trabalhadores. É desnecessário afirmar que aqui o pano de fundo é outro, que existem, quando muito, arremedos de Estados de Bem-estar e que a democracia, a muito custo, tenta fazer sua reentrada num continente marcado por sucessivos períodos de ditaduras declaradas ou disfarçadas, civis ou militares (com preponderância das últimas). Em suma, aqui na América Latina o conservadorismo propõe discussões e modelos pós-welfare para sociedades que nem sequer se aproximaram daquela configuração no que diz respeito a direitos sociais e distribuição de renda e onde, ao contrário, o Estado tem servido historicamente mais aos interesses das classes dominantes associadas-dependentes ou não do capitalismo mundial, do que aos setores subalterno
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Empresas
terceirizadas quebram sem deixar pistas
Muitas firmas desse tipo são abertas em nome de laranjas, e
quando fecham as portas, deixam de cumprir os direitos trabalhistas que são
devidos aos empregados
LUISA BRASIL
11 de Abril de
2015
Rio - O tempo fechou para os trabalhadores na
quarta-feira, quando 324 deputados federais deram seus votos a favor do Projeto de
Lei 4.330, que amplia a
possibilidade de terceirização no país. Antiga demanda dos
empresários, a subcontratação vai permitir que as empresas flexibilizem os
contratos de trabalho de sua mão de obra, substituindo um custo fixo por outro
variável, que pode ser redimensionado de acordo com a necessidade das
companhias.
Na teoria, funciona. Mas o que a
experiência brasileira mostra é que se a dinamização da produção corta um custo
financeiro de um lado, ela eleva um custo humano do outro. Além de receber
salários mais baixos, outro problema que os terceirizados enfrentam é a
dificuldade de exigir seus direitos quando a terceirizada não cumpre com suas
obrigações legais.
“As empresas somem, desaparecem e os
empregados ficam a ver navios. Muitas vezes, os mesmos empresários criam uma
nova empresa depois, por meio de um laranja, e continuam operando”, afirma
Paulo Schmidt, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do
Trabalho (Anamatra).
Ele diz que este tipo de calote é a
principal causa das demandas de terceirização na Justiça do Trabalho. A
situação ocorre devido à triangulação que se forma na terceirização: um
faxineiro, por exemplo, trabalha em uma escola, mas seu verdadeiro patrão é uma
empresa que fica situada em outro local. Como ela não produz nada, não costuma
ter um endereço acessível e tampouco um patrimônio que possa garantir o
pagamento de verbas devidas aos empregados.
“São empresas que não têm capital de
reserva para pagar indenizações quando dá algum problema”, afirma Almir Aguiar,
presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro.
Hoje, há cerca de 16 mil processos
tramitando no Tribunal Superior do Trabalho (TST) envolvendo a terceirização.
Este número é apenas a ponta de um iceberg, já que representa somente aquelas
ações que chegam ao último grau de recurso.
Uma auxiliar de limpeza que trabalha
para uma prestadora de serviços da União no Rio, que não quis se identificar,
conta as dificuldades que tem passado com os “patrões invisíveis”. Com salários
e tíquete-alimentação atrasados, os trabalhadores não conseguem contato os
donos da
empresa. “Quando eles vão contratar, abrem o escritório em determinados dias da
semana para a inscrição.
Depois, se a gente quer falar sobre este tipo de problema, não permitem nossa
entrada”, afirma.
A auxiliar conta que, antes de ser
terceirizada, já trabalhou como empregada direta em um hotel,
onde tinha melhores condições. “Mas hoje 99% contratam dessa forma”, diz.
HÁ EMENDAS QUE TENTAM LIMITAR
SUBCONTRATAÇÃO
Na próxima terça-feira, o Congresso vai
apreciar as emendas do PL 4.330. Elas são sugestões votadas separadamente que
podem modificar o conteúdo do projeto principal.
Até agora, foram 72 propostas de
emendas, que versam sobre os pontos polêmicos do projeto. Deputados do PT e do
PC do B tentam limitar as possibilidades de subcontratação de mão de obra.
Já o deputado Paulinho da Força
(SD-SP), ligado à Força Sindical, negocia a inclusão de emendas que permitam
que os empregados terceirizados sejam representados pelos mesmos sindicatos dos
trabalhadores das empresas contratantes, quando eles exercerem a mesma
atividade econômica.
Há deputados que sugerem que as normas
sejam aplicáveis também à administração públicadireta, ou seja, a todos os
órgãos da União, estados e municípios. O deputado Domingos Neto (Pros-CE),
afirma que esta medida resultaria em uma “administração mais ágil, eficiente e
menos burocrática”.
Outro ponto polêmico do projeto é sobre
a responsabilidade das empresas. O texto-basse aprovado na Câmara define que
empresas contratantes das terceirizadas possuem responsabilidade subsidiária,
ou seja, só podem ser acionadas judicialmente se a prestadora de serviços não arcar
com seus compromissos.
Há emendas que tentam transformar esta
responsabilidade em solidária. Desta forma, se houver falha na garantia de
direitos o trabalhador poderá acionar as duas empresas na Justiça e ambas serão
responsáveis por garantir os direitos.
Segundo o deputado Rubens Bueno
(PPS-PR), autor de um dos destaques neste sentido, a medida “institui uma cultura de maior
responsabilização dos gestores com relação àqueles que, de fato, fazem o
trabalho da empresa”.
A FAVOR: MAIOR
SEGURANÇA JURÍDICA
GISELA GADELHA, gerente Jurídica do
Sistema Firjan
1. Para as empresas, qual é a
importância de se abolir os conceitos de atividade-fim e atividade-meio?
— O fim da distinção possibilitará
maior segurança jurídica às partes, uma vez que não havia definição legal do
que seria cada um deles. Isso possibilitará uma ampliação das atividades
terceirizadas, o que vem ocorrendo em outros países, assegurando maior
competitividade e eficiência para a indústria.
2. A classe
empresarial defende o projeto com base no critério da “especialidade”. Na
prática, o que isso significa?
— Significa que não poderão ser
contratadas empresas com escopo genérico, aquelas que fazem tudo e oferecem
seus serviços às contratantes como mera intermediação de mão de obra.
3. Várias empresas terceirizadoras
pedem falência sem pagar verbas trabalhistas aos funcionários. Há algum
mecanismo na lei que minimiza esta insegurança?
— Sim. O Projeto de Lei 4.330 prevê
expressamente o dever de fiscalização do contratante e o torna responsável subsidiário
pelo pagamento dos encargos trabalhistas e previdenciários no caso de
inadimplência da contratada, podendo tal responsabilidade se tornar solidária
no caso de ausência de fiscalização.
4. Há exemplos de atividades cuja
terceirização era vedada e será liberada?
— Hoje, uma indústria de produtos
alimentícios não pode terceirizar nenhuma etapa de seu processo produtivo. Se o
projeto for aprovado, poderá terceirizar “a execução de parcela de qualquer de
suas atividades”.
CONTRA: MUDANÇA
RADICAL DOS DIREITOS
PAULO SCHMIDT, PRESIDENTE DA ANAMATRA
1. Quais são as principais demandas de
terceirizados na Justiça?
— A principal é de empresas
terceirizadas que simplesmente desaparecem. Nas companhias permanentes, não é
tão comum que elas fiquem sem patrimônio. O grande gargalo na execução dos
processos é no setor das terceirizadas, o famoso “ganha, mas não leva”.
2. O setor empresarial defende que a
terceirização permite uma maior especialização nas funções.
— Ao longo dos anos, a Anamatra sempre
contestou este argumento dos empresários. Uma pesquisa da Federação Única dos
Petroleiros (FUP) constatou que 98% das empresas terceirizam para reduzir
custos e apenas 2% buscam a especialização.
3. Vocês juízes se surpreenderam com
uma mudança tão profunda sendo votada tão rapidamente?
— Jamais se imaginou que pudesse haver
uma reforma tão drástica, sendo que nunca ninguém sequer defendeu isso em uma
campanha eleitoral. A gente vê a discussão sobre atualizar a CLT, mas nada tão
radical quanto foi feito agora. E isso é resultado da desarticulação da base do
governo.
4. Há pessoas que temem o aumento da
“pejotização” (contratação por meio de pessoa jurídica). Há esse risco mesmo?
— Na verdade, não é a mesma coisa. A
‘pejotização’ transforma o empregado em uma empresa individual. A terceirização
é uma intermediação, em que uma empresa formalmente contrata outra para
fornecer mão de obra. O governo negociou uma emenda para evitar mais “PJs”, mas
ele estava pensando mais arrecadação de tributos.
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Os índios e o golpe na Constituição
Por que você deve ler essa
coluna “apesar” da palavra índio
Os índios vão ocupar Brasília nesta semana. Ao escrever a
palavra “índio”, perco uma parte dos meus leitores. É uma associação imediata:
“Índio? Não me interessa. Índio é longe, índio é chato, índio não me diz
respeito”. E, pronto, clique fatal, página seguinte. Bem, para quem ainda está
aqui, uma informação: mais de mil lideranças indígenas ocupam Brasília de 13 a
16 de abril em nome dos seus direitos, mas também em nome dos direitos de todos
os brasileiros. Há um golpe contra a Constituição em curso no Congresso Nacional. Para ser
consumado, é preciso exatamente o seu desinteresse.
Guarde essa sigla e esse número: PEC 215. Quando se fala em PEC
215, só a sigla e o número já afastam as pessoas, porque neles estão embutidos
toda uma carga de burocracia e um processo legislativo do qual a maioria da
população se sente apartada. Os parlamentares que querem aprová-la contam com
esse afastamento, porque a desinformação da maioria sobre o que de fato está em
jogo é o que pode garantir a aprovação da PEC 215. Se durante séculos a palavra
escrita foi um instrumento
de dominação das elites sobre o povo, hoje é essa linguagem, é essa
terminologia, que nos faz analfabetos e nos mantém à margem do centro do poder
onde nosso destino é decidido. É preciso vencer essa barreira e se apropriar
dos códigos para participar do debate que muda a vida de
todos. A alienação, desta vez, tem um preço impagável.
O que é uma PEC? PEC é uma Proposta de Emenda à Constituição. Um
instrumento para, em tese, aprimorar a Constituição de 1988. O que essa PEC, a 215, pretende, em resumo, é transferir do
Executivo para o Congresso o poder de demarcar terras indígenas, territórios
quilombolas e unidades de conservação. Só que o resumo, como a gente sabe,
nunca explica muita coisa. O direito ao território ancestral é uma garantia
fundamental da Constituição porque a terra é parte essencial da vida dos
índios. Sem ela, condena-se povos inteiros à morte física (genocídio) e cultural (etnocídio).
Isso explica por que, em 2012, um grupo de Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul pediu, numa carta aos
brancos, que fossem declarados mortos.Preferiam ser extintos a ser
expulsos mais uma vez:
“Pedimos
ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de
despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos
aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação
total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e
enterrar nossos corpos. Este é o nosso pedido aos juízes federais”.
Sem a terra de seus ancestrais, um índio não é. Não existe. Os
Guarani Kaiowá, uma das etnias em
situação mais dramática doBrasil e possivelmente do mundo, testemunham
o suicídio de um adolescente a cada seis dias, em geral enforcado num pé de
árvore, por falta de perspectiva de viver com dignidade no território dos seus
antepassados. Por isso esse grupo afirmou que preferia morrer a ser expulso,
mais uma vez, porque pelo menos homens, mulheres e crianças morreriam juntos,
já que os indígenas se conjugam no plural, e morreriam no lugar ao qual
pertencem.
O
pacote maligno
O poder de demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e
unidades de conservação é atribuído ao Executivo pela Constituição não por
acaso, como se fosse um jogo de dados, em que a sorte determina o resultado e
tanto faz. Foi atribuído por critérios claros, estudados em profundidade, com o
objetivo de reconhecer direitos e proteger o interesse de todos os brasileiros.
É o Executivo que tem a estrutura e as condições técnicas para cumprir o rito
necessário à demarcação, desde equipes capacitadas para fazer os estudos de
comprovação da ocupação tradicional até a resolução de conflitos e a eventual
necessidade de indenizações. Da mesma forma, é bastante óbvio que a criação de
áreas de preservação são parte estratégica da política social e ambiental de
qualquer governo.
Quando os parlamentares tentam tirar o poder de demarcação do
Executivo para entregá-lo a eles próprios, o que estão tentando fazer não é
aprimorar a Constituição, mas dar um golpe nela. Na prática, a PEC 215 é apenas
a pior entre as várias estratégias em curso paraacabar
com os avanços da
Constituição no que diz respeito à preservação do meio ambiente e aos povos
indígenas, aos quilombolas e aos ribeirinhos agroextrativistas que o
protegem.Na prática, se a PEC 215 for aprovada, o mais provável é a paralisação
do processo de demarcação de terras indígenas e quilombolas, assim como a
paralisação da criação de unidades de conservação. É nesse ponto que a PEC 215
passa a ameaçar também o direito fundamental de todos os brasileiros a um meio
ambiente ecologicamente equilibrado e, por extensão, ameaçar o direito à vida.
A PEC 215, a qual espertamente foram sendo juntados vários penduricalhos
perigosos, tornou-se uma espécie de pacote maligno. Ela também
pretende determinar que apenas os povos indígenas que estavam “fisicamente” em
suas terras na promulgação da Constituição de 1988 teriam direito a elas.
Assim, todos aqueles que foram arrancados de suas terras tanto por grileiros
quanto pelos projetos de ocupação promovidos pelo Estado, seriam agora expulsos
em definitivo. A proposta aqui é legalizar o crime, já que os índios tirados de
suas terras pela força lá atrás seriam “culpados” por não estarem nelas,
perdendo-as para sempre. Parece coisa de maluco, mas é isso que se defende. Ao
investigar os crimes da ditadura, a Comissão Nacional da Verdade constatou que,
em apenas dez etnias, 8.350 índios foram assassinados. A reparação por meio da
demarcação e da recuperação ambiental de suas terras foram consideradas medidas
mínimas e indispensáveis para a restauração da justiça.
Se
a PEC 215 passar, por um lado não se demarca mais terras indígenas, por outro,
é retirada a proteção daquelas que já estavam garantidas
Mas há algo ainda pior na PEC 215. Ela pretende abrir exceções
ao usufruto exclusivo dos povos indígenas, como arrendamentos a não índios,
permanência de núcleos urbanos e propriedades rurais, construção de rodovias,
ferrovias e hidrovias. Busca também revisar os processos de demarcação em
andamento, assim como impedir a ampliação de terras já demarcadas. Há ainda o
risco de a PEC 215 abrir espaço, se aprovada, para que as terras já
asseguradas sofram modificações segundo os novos critérios. Para entender: se a
PEC 215 passar, o que pode acontecer é que, por um lado, não há demarcação de
novas terras; por outro, é retirada a proteção daquelas que já estavam
garantidas.
As
mãos por trás do golpe
Este é um mundo perfeito para quem? Para mim, para você?
Acredito que não. Mas é para alguns. Sempre é para alguns. Basta ver quem está
no comando da comissão da PEC 215 para entender. Toda a coordenação é da
chamada “bancada ruralista”. Mas é importante compreender de que ruralistas
estamos falando, para não reforçar uma falsa oposição com os produtores rurais
do Brasil, com aqueles que de fato têm interesse em colocar o alimento na mesa
dos brasileiros. Um mundo sem terras indígenas e sem unidades de conservação
seria bom para quem produz alimentos para o país? Me parece que não. Produtores
rurais inteligentes e com espírito público, sejam eles pequenos ou grandes,
sabem que precisam de água para produzir. Se precisam de água pra produzir,
precisam de floresta em pé. Se precisam de floresta em pé, precisam de terras
indígenas e de áreas de conservação.
Então, se este mundo não é bom nem para mim nem para você nem
para quem produz alimentos, para quem este mundo é bom? Sempre é possível ter
uma pista seguindo o dinheiro. No caso, o dinheiro do financiamento das
campanhas. Segundo o Portal
de Políticas Socioambientais, em análise feita a partir de dados do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pelo menos 20 dos quase 50 deputados da
comissão especial que analisa a PEC 215 foram financiados por grandes empresas
do agronegócio, de mineração e de energia, por empreiteiras, por madeireiras e
por bancos. Alguns destes parlamentares receberam, sozinhos, mais de um milhão
de reais de empresas ligadas a esses segmentos.
Este é um capítulo importante para compreender os porquês. Tanto
as terras indígenas quanto as unidades de conservação são terras públicas. Aos
povos indígenas cabe o usufruto dessas terras. As unidades de conservação são
parques e florestas nacionais, estações ecológicas, reservas extrativistas ou
biológicas, refúgios da vida silvestre etc, que pertencem a todos nós e que são
criadas para impedir a exploração predatória e proteger a biodiversidade,
estratégica para o desenvolvimento sustentável.
O
objetivo é transformar terras públicas e protegidas em terras privadas para a
exploração e o lucro de poucos
Como então colocar a mão nessas terras públicas e protegidas (ou
que ainda deverão ser protegidas), terras que são patrimônio de todos os
brasileiros, para que elas possam se tornar privadas, para a exploração e o
lucro de poucos? Desprotegendo essas terras. E como fazer isso? Dando um golpe
na Constituição. Mas como dar um golpe na Constituição? Travestindo esse golpe
de legalidade pelo processo legislativo. Junta-se a isso um governo
fragilizado, com baixa aprovação popular e pouco apoio até mesmo entre suas
bases, e o Congresso mais conservador desde a redemocratização. Pronto, estão
dadas as condições para o crime.
Se depois o Supremo Tribunal Federal considerar inconstitucional
a emenda, anos já se passaram e tanto a privatização do que é público quanto a
devastação de biomas como a floresta amazônica e o Cerrado já se tornaram fatos
consumados. E o Brasil, como se sabe, é o país do fato consumado. Basta acompanhar
a trajetória de Belo Monte, que entre ilegalidades constantemente
denunciadas, várias ações movidas pelo Ministério Público Federal e a suspeita
de pagamento de propinas pelas empreiteiras investigadas pela Operação Lava
Jato, vira fato consumado à beira do Xingu. Quando finalmente chegar ao
Supremo, já será tarde demais.
Os
índios, esses estrangeiros nativos
A conversão do público para o privado, em benefício dos grandes
interesses particulares de exploração da terra e dos recursos naturais do
Brasil, é o que está na mesa nesse jogo de gente bem grande. Cabe à população
brasileira se informar e participar do debate, se concluir que este não é o
projeto de país que deseja. Por causa dos povos indígenas, dos quilombolas, dos
ribeirinhos? Me parece que seria motivo mais do que suficiente. Sobre os
índios, em especial, aqueles que têm grandes interesses nas riquezas das terras
que ocupam, costumam espalhar preconceitos como o de que seriam “entraves ao
desenvolvimento” e o de que não seriam índios “de verdade”. Mas entraves a qual
desenvolvimento e ao desenvolvimento para quem? E o que seria essa categoria,
“um índio de verdade”?
Vale a pena examinar os preconceitos de perto, para perceber que
eles não param em pé depois de um confronto mínimo com a realidade. Para
começar, não existe “o” índio, mas uma enorme diversidade na forma como cada um
dos 242 povos indígenas listados pelo Instituto Socioambiental dá sentidos ao
que chamamos de mundo e se vê dentro do mundo – ou dos mundos. O Brasil lidera
o ranking dos 17 países mais megadiversos, em grande parte por causa dos povos
indígenas. Por países megadiversos compreende-se aqueles que concentram a maior
parte da biodiversidade do mundo e, portanto, da sua preservação depende o
planeta inteiro. Essa é maior riqueza do Brasil, mas a ganância de poucos e a
ignorância de muitos a ameaça e destrói, colocando em risco a vida de todos.
Os povos indígenas, guardiões da biodiversidade, são silenciados
também pela simplificação, às vezes apenas burra, em geral mal intencionada, de
fazê-los parecerem um só, chapados como “entraves ao desenvolvimento”.
Estima-se que havia mais de mil povos indígenas quando os europeus
desembarcaram no Brasil. Hoje, parte dos parlamentares do atual Congresso não
mede esforços para completar o genocídio iniciado 500 anos atrás.
Quando a Constituição assegurou os direitos dos povos indígenas,
em 1988, não criou direitos novos, apenas reconheceu direitos pré-existentes,
já que eles estavam aqui antes de qualquer europeu. Legalmente, não se trata de
“dar” terra aos povos indígenas, mas apenas de demarcar a terra que sempre foi
deles. Nesse processo, de responsabilidade do Executivo, é preciso indenizar
aqueles fazendeiros e agricultores que possuem títulos legais de propriedade (e
o “legais” aqui deve ser bem sublinhado), dados pelos governos nos tantos
projetos de ocupação, gente que não têm a menor culpa de ter sido despachada
com suas famílias para território indígena. Pela Constituição, o Estado tinha
um prazo de cinco anos
para demarcar as terras indígenas. Como sabemos, passaram-se mais de 25 anos e
dezenas delas ainda não foram demarcadas.
Como também sabemos, a ilegalidade faz mal ao país: os conflitos
de terra que se espalham pelo Brasil, semeando cadáveres, são resultado da
demora em cumprir a Constituição, sobre a qual a bancada ruralista tenta agora
dar um golpe. Vale lembrar ainda que os direitos fundamentais são colocados na
Constituição também para que a maioria de ocasião não possa ameaçá-los em nome
de seus interesses. A importância dessa proteção fica mais clara se prestarmos
atenção à atual composição do Congresso: há dezenas de ruralistas e nenhum
indígena.
No capítulo “mentiras & manipulações” sobre os povos
indígenas há pelo menos três linhas de não pensamento bastante populares no
Congresso e fora dele. Há os “atrasadistas”, gente que estudou e que coleciona
diplomas, mas prefere ignorar a Antropologia e pensadores da estatura de Claude
Lévi-Strauss, para considerar que os índios são “atrasados”. Para estes, existe
uma cadeia evolutiva única e inescapável entre a pedra lascada e o Ipad. Não
conseguem – ou não querem – ter a amplidão mínima de pensamento para
compreender a multiplicidade de escolhas e de caminhos possíveis para a
trajetória de um povo. Tampouco alcançam perceber que são essas as diferenças
que formam a riqueza da experiência humana. E, claro, preferem se “esquecer” do
que o tipo de “progresso” que defendem causou ao planeta.
A segunda linha de não pensamento é a dos “fiscais de
autenticidade”. Quando a classificação dos índios como “atrasados” e “entraves
ao desenvolvimento” falha, trata-se então de dizer que, sim, os índios têm
direitos, mas só os “de verdade”. Haveria então os não legítimos, aqueles que
falam português, usam celular e gostam de assistir à TV ou andar de carro.
Nessa lógica abaixo da linha da estupidez, os brasileiros que falam inglês, vão
à Disney, preferem rock ao samba e ultimamente andam gostando de torcer por
times europeus de futebol, também poderiam ser considerados falsos brasileiros
e perder todos os seus direitos. Nessa altura da história humana e com tanto
conhecimento produzido era de se esperar um pouco mais de sofisticação na
compreensão daquilo que faz de alguém o que é.
Quando as duas mentiras anteriores são desmascaradas, aparecem
os “bons samaritanos” para salvar a Pátria – deles. Estes acham que quem gosta
de mato é antropólogo e ambientalista e que o sonho dos indígenas, o sonho
mesmo, no “íntimo do seu intrínseco”, é viver em nossas maravilhosas favelas e
periferias, com esgoto serpenteando na porta e polícia dando tiro nas
escadarias, à custa de Bolsa Família e cesta básica. Este seria o ápice da
evolução: de “índio falso”
a “pobre brasileiro legítimo”. Quem, afinal, poderia resistir a tal
progresso na vida?
Um golpe na Constituição aqui e acolá e estes bons samaritanos
chegam ao ponto ótimo: ajudam os índios que não conseguiram matar a virar
pobres e, pronto, para que terra para índio, se já não existe índio? A
ignorância só perde para a má fé. Mas é com preconceitos como estes,
espertamente disseminados e manipulados, que se tenta transformar os indígenas numa espécie de
estrangeiros nativos, como se os “de fora” fossem aqueles que sempre
estiveram dentro. Essa xenofobia invertida seria apenas nonsense, não fosse
totalmente perversa, a serviço de objetivos bem determinados.
Aderir
ou pensar?
Há muita terra para pouco índio? Não. Como costuma dizer o
socioambientalista Márcio Santilli, “há muita terra para pouco fazendeiro”.
Segundo o Censo de 2010 do IBGE, há 517 mil índios aldeados em menos de
107 milhões de hectares de terras indígenas, o equivalente a 12,5% do
território brasileiro. E onde estão essas terras? Mais de 98% delas estão na
Amazônia Legal – e menos de 2% fora de lá. Já os 46 mil maiores proprietários
de terras, segundo o Censo Agropecuário do IBGE, exploram uma área maior do que
essa: mais de 144 milhões de hectares.
Sobre a realidade da concentração fundiária no país, que
continua a crescer, o Cadastro de Imóveis Rurais do Incra (Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária) mostra que as 130 mil grandes propriedades
rurais particulares concentram quase 50% de toda a área privada cadastrada no
Incra. Já os quase quatro milhões de minifúndios equivalem, somados, a um quinto
disso: 10% da área total registrada. Em entrevista ao
jornal O Globo, o
pesquisador Ariovaldo Umbelino de Oliveira, coordenador do Atlas da Terra,
afirmou que quase 176 milhões de hectares são improdutivos no Brasil. Prestar
atenção nos números já é um começo para pensar, em vez de simplesmente aderir.
Falta espaço para a produção de alimentos no país? Tudo indica
que não. Num país com essa quantidade de terras destinada à agropecuária e com
essa concentração de terras na mão de poucos, afirmar que o problema do
desenvolvimento são os povos indígenas só não é mais ridículo do que Kátia
Abreu, a latifundiária que diz não existir mais latifúndio no Brasil e hoje
ministra da Agricultura, afirmar que “o problema é que os índios saíram da
floresta e passaram a descer na área de produção”. Os índios, esses invasores
do mundo alheio. Mas é assim que a história vai sendo distorcida ao ser contada
para a população.
Então, sim, respeitar os direitos dos povos indígenas já seria
um motivo suficiente para lutar contra a PEC 215. Mas a PEC 215 não ameaça
apenas os povos indígenas e as populações tradicionais. Ela ameaça a vida de
todos os brasileiros. E por quê? Porque se temos floresta em pé é por causa dos
povos indígenas e das populações tradicionais, são eles a pedra no caminho de
um tipo de exploração que, depois de consumada, lucros privatizados na mão de
poucos, deixa para nós todos o custo da devastação. E agora, nos estados da
região sudeste, nós finalmente compreendemos, com o colapso da água, qual é o
custo da devastação. Nós finalmente começamos a compreender o quanto corroemos
a nossa vida cotidiana ao destruir as florestas e ao contaminar os rios. Não é
mais algo subjetivo, uma abstração, mas algo bem concreto. Não é mais um futuro
distante, é aqui e é agora. Não são mais os nossos netos, mas os nossos filhos
que sofrerão e já sofrem com esse planeta mastigado. Assim como nós mesmos. E
só está começando.
Lutar democraticamente para barrar a PEC 215 não é uma atitude
altruísta, não é um esforço para respeitar os direitos indígenas, não é algo
que fazemos porque somos pessoas bacanas, gente do bem. Barrar a PEC 215 é
atender ao nosso instinto de sobrevivência num mundo em que as mudanças
climáticas são possivelmente o maior desafio da história humana nesse planeta,
que é o único que temos e que destruímos. Se o golpe à Constituição for
consumado, o meio ambiente no Brasil perderá boa parte das barreiras que ainda
impedem a devastação, reunindo condições e abrindo espaço para a aceleração da
corrosão da vida.
Há muita atenção da imprensa e da população sobre os protestos
nas ruas do Brasil. O curioso é que, quando são os índios que ocupam o espaço
público, apesar de todo o seu colorido, de sua fascinante diversidade, eles
correm o risco de tornar-se automaticamente invisíveis. Sua dor, sua morte e
sua palavra parecem não existir – ou existir apenas no diminutivo. O olhar dos
não índios os atravessa. Desta vez, ainda que por instinto de sobrevivência,
seria conveniente enxergá-los. Mas, claro, sempre podemos concluir que o melhor
para todos nós é viver cercado de cimento, fumaça e rios de cocô.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista.
Autora dos livros de não ficção Coluna
Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina
Quebrada, Meus Desacontecimentos e
do romance Uma Duas.
Site:descontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:@brumelianebrum
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